Passa o fio pelo buraco com a ajuda da agulha, coloca-lhe os pelos e fixa-os, num movimento já há muito automatizado e que poderia quase fazer de olhos fechados. É assim o dia a dia de Fátima Silva, a funcionária mais antiga da Escovaria de Belomonte, no Porto.
A poucos dias de completar 45 anos de casa, “Fatinha”, como é aqui carinhosamente tratada, é a única funcionária que passou por todas as gerações da família que tomaram conta do negócio. Começou quando tinha 16 anos, pelas mãos do fundador, António da Silva, e atualmente vai ensinando tudo o que aprendeu ao longo dos anos ao mais recente responsável, Sérgio Rodrigues, bisneto do fundador.
“Antigamente tínhamos que trabalhar e então era o que aparecesse, não tínhamos grande oportunidade de escolha. Estava numa drogaria a trabalhar e na altura o senhor António precisava de uma empregada, o meu pai falou-lhe e eu vim para aqui, saí da drogaria e vim para aqui ganhar mais”, começa por contar à New in Porto.
Antes disso, tinha como sonho trabalhar na área da confeção, mas acabou por não encontrar emprego e ir para a tal drogaria. Quando entrou para a Escovaria de Belomonte, não fazia ideia do tipo de trabalho aqui desenvolvido, aprendeu com os colegas mais velhos, que lhe foram dando formação, e o resto descobriu com a prática.
Aqui, Fátima faz de tudo um pouco mas as suas favoritas são as escovas industriais, por onde começou o seu trabalho na casa e, curiosamente, aquelas que estava a fazer enquanto dava a entrevista. Sim, sem se desconcentrar nem evitar o contacto visual porque as mãos já sabem o que têm que fazer depois tantos anos.
O trabalho na Escovaria de Belomonte continua a ser feito à mão, como antigamente, não mudou muito desde que Fátima aqui chegou. Aliás, esta é a única escovaria manual que existe atualmente em toda a Península Ibérica, como explicam os responsáveis. Há cerca de 30 anos, eram pelo menos três ou quatro só nesta zona da Baixa do Porto, o que mostra como esta arte se tornou tão rara.
Chegaram a ser mais de cinco pessoas a trabalhar na oficina para fazer face a todo o trabalho. Hoje em dia, encontramos aqui Fátima, que se junta a Sérgio Rodrigues, o bisneto do fundador, e ao seu pai, Rui Rodrigues.
A mais antiga funcionária da casa acredita que hoje em dia “o público em geral quer coisas mais acessíveis monetariamente, não quer nada assim tão caro” e por isso acabam por optar pelas escovas e vassouras de supermercado, por exemplo. O preço justifica-se pelo trabalho, que continua a ser feito todo à mão, mas nem todos os artigos têm preços tão elevados como se imagina.
“Sinto orgulho, é uma coisa feita à mão e nem é o ser feito por mim, é pela Escovaria, já nem penso tanto no que faço mas sim no que se faz para a casa”, diz Fátima Silva para descrever o que sente quando vê alguém comprar ou usar um artigo que saiu desta oficina.
Diariamente, o trabalho aqui vai variando conforme as épocas e as encomendas, ora mais do lado industrial, ora das escovas de uso pessoal. Cada escova pode levar uma hora ou vários dias a fazer, conforme seja necessário apenas encher ou cortar a madeira, lixá-la e até colá-la. Aqui fazem-se até mesmo restauros de escovas que pertencem a várias gerações de diferentes famílias, tenham ou não sido feitas inicialmente na loja.
“Já fizemos várias peças engraçadas”, aponta, acrescentando: “Tem um aspeto velho e quando a pessoa manda restaurar fica a parecer nova, quase como se tivesse sido oferecida pela família agora”.
As escovas de ourives, com aplicações em prata, são aquelas que mais facilmente reconhece, mas muitas vezes são os próprios clientes quem explica que a escova era mesmo original daqui de Belomonte.
Fátima Silva diz que “gostava que houvesse mais trabalho, que desse para meter mais pessoas a trabalhar”, mas também tem a experiência de que as novas gerações que aqui passam em curtos períodos de estágios escolares, por exemplo, não vêem na escovaria o seu futuro. Ao contrário de si. “Fui ficando e nunca mais me imaginei a fazer outra coisa, agora fico até à reforma”, remata.
Criada em 1927, a Escovaria de Belomonte começou a sua produção pelas vassouras e escovas industriais, em Massarelos. Foi num período entre 1948 e 1953, não sabem exatamente o ano, que passou para a atual morada, no número 34 da Rua de Belomonte, que se transformou na Escovaria de Belomonte de António da Silva.
Por essa altura, começavam a fazer também as escovas de uso pessoal, para calçado ou roupa, por exemplo, quando o fundador morreu, passando a gestão para o seu filho, Fernando Cruz Silva. Em 2007, após a sua morte, foi o momento em que a escovaria passou para as mãos da terceira geração, Olinda Silva Rodrigues e o seu marido, Rui Rodrigues. A eles juntou-se também Sérgio Rodrigues, de 30 anos, o membro da quarta geração da família responsável por orientar o futuro da empresa.
“Fui um bocadinho obrigado pelo meu pai a vir para aqui trabalhar, reconheço, fiquei aqui durante muito tempo e hoje em dia não me vejo a fazer outra coisa”, conta.
Hoje em dia, não têm concorrência, o que até lamenta “porque a concorrência faz sempre bem, obriga-nos a fazer melhor”. Por outro lado, as escovas de fato e os pincéis de barbear estão a ganhar uma nova vida, passando a ser mais pedidos pelos clientes, que são maioritariamente estrangeiros.
Outro dos detalhes que atraem à Escovaria de Belomonte muitos curiosos é o facto de vários blogues e sites dedicados à saga de “Harry Potter” dizerem que foi aqui, nas vassouras penduradas junto à porta, que J.K. Rowling se inspirou para criar a vassoura do famoso feiticeiro, mesmo que não haja uma confirmação oficial sobre isso. “Pessoalmente, acho que não era preciso haver uma escovaria para imaginar um bruxo de vassoura, mas somos muito visitados por esses aficionados”, diz Sérgio.
A nova geração da família olha para o futuro sem querer esquecer o passado, com o qual acredita que vale muito a pena aprender. Em simultâneo, acredita que há uma mudança de mentalidades no País e que é possível que se comece a valorizar mais esta arte em vias de extinção.
“Começa a surgir a mentalidade no público português, que começou a mudar e a interessar-se mais por este tipo de produtos, não só pela escova mas também pelo feito à mão.”
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