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Jean Paul Gaultier: “Entendi que posso ser amado através do meu trabalho”

O designer francês falou com a NiT sobre o espetáculo "Fashion Freak Show", que estreia em Portugal em novembro.
O francês deixou a alta costura em 2020.

O público já aplaudia de pé quando Jean Paul Gaultier apareceu na passarela, no teatro Théâtre du Châtelet, em Paris (França), para um último adeus. Em janeiro 2020, o designer francês despediu-se da moda através de um verdadeiro espetáculo com direito a orquestra, cantores ao vivo — como Boy George — e cerca de 200 coordenados que piscavam o olho aos marcos da sua carreira.

No entanto, deixou claro que aquele momento não seria o fim. “Moda para sempre”, podia ler-se num caixão que entrou no cenário, com dois seios presos na tampa e uma coroa de flores. O desfile começou com a representação de um funeral, mas não simbolizou nada mais do que o renascimento artístico de um dos maiores provocadores da indústria.

Após 50 anos de carreira, o visionário de 71 anos, que ficou conhecido como o “enfant terrible”, decidiu encerrar o ciclo e dedicar-se a novos projetos. Deixou o público com propostas inesquecíveis — como o soutien em cone que fez para Madonna, nos anos 90 —, mas tinha chegado “a hora de passar o testemunho à geração mais nova”, conta à NiT.

Desde a despedida das passarelas, decidiu concentrar-se no espetáculo “Fashion Freak Show”, que estreou ainda em 2018, em Paris. Em palco, é celebrada a história de um homem que esteve na linha da frente de quase todas as revoluções, do punk à androginia, da blasfémia à liberação sexual. Contudo, sempre de mãos dadas com o clássico estilo parisiense, seja na camisola marinière de riscas azuis e brancas ou nas boinas.

Gaultier prepara-se para apresentar a sua produção musical em Portugal. As performances vão acontecer de 8 a 12 de novembro, no Sagres Campo Pequeno, em Lisboa; e na Super Bock Arena, no Porto, entre 16 e 19 de novembro.

Escrita e dirigida pelo próprio, vai mostrar algumas das suas peças mais icónicas e muitos modelos inéditos, num cenário marcado por efeitos visuais. Os artistas irão recriar os desfiles de moda e outros momentos-chave da vida do estilista — desde a infância à sua ascensão no mundo da alta costura.

Antes de chegar a Portugal, o quinto país a receber esta produção especial, o designer falou com a NiT sobre o espetáculo. Falou sobre as inspirações, a forma como olha para a moda e ainda a sua relação com a capital.

Como é que a ideia deste espetáculo surgiu?
Quando era miúdo, talvez com nove anos, vi a estreia do “Folies Bergère” na televisão, em casa da minha avó. Lembro-me das raparigas a descerem do teto vestidas com meias de rede e plumas. Fiquei tão impressionado com isso que, no dia seguinte, numa aula, desenhei-as e fui apanhado pela professora. Ela colou os esboços nas minhas costas e fiquei com eles durante as aulas todas. Mas teve um efeito contrário. De repente, tornei-me popular e todos os meus colegas queriam que eu desenhasse algo para eles. Percebi que podia ser amado através do meu trabalho.

Tudo começou com o cabaré.
Só anos mais tarde, quando vi o filme “Falbalas”, de Jacques Becker, sobre uma casa de alta-costura durante a guerra, é que entrou o design. No final havia um desfile de moda. Quando o vi, disse que era o que queria fazer e tornei-me designer de moda e couturier. No entanto, o teatro e o cararé ficaram sempre na minha mente e, quando estava a aproximar-me do marco dos 50 anos de carreira, pensei que talvez tivesse chegado a altura de voltar ao meu primeiro amor.

E quando é que começou a desenvolver o conceito?
Começámos a preparar tudo em 2016 e apresentámos o espetáculo em Paris, em 2018. Desde então, tem sido apresentado internacionalmente. Estou muito orgulhoso. Para ser sincero, não estava à espera de tanto sucesso.

Por que é que decidiu contar a história da sua vida em palco?
Esta é a história que conheço melhor. É a minha história e escrevi-a visualmente. Não sou muito bom com palavras para escrever um livro, mas sabia exatamente como cada cena deveria ser e qual deveria ser a música associada.

Como é que, enquanto designer de moda, traduziu a sua linguagem para um musical?
Trabalhei em teatro e ballet ao longo da minha carreira. Gosto de explorar as histórias de outras pessoas, respeitando-as e, ao mesmo tempo, fazendo-a de uma maneira muito “Gaultier”. Desta vez foi diferente, porque a história era minha e podia fazer exatamente o que queria.

Mas trabalhar um figurino acaba por ser diferente.
Quando se criam coleções prêt-à-porter, as roupas têm de ser usadas, logo têm de ser práticas. Quando se fazem fatos de dança, têm de ser usados para atuar, por isso cada um tem as suas próprias restrições.

Em “Fashion Freak Show”, mostra algumas das suas criações mais memoráveis. Como foi o processo de seleção?
Escolhi-as para combinar com a história — há looks do meu primeiro desfile, em 1976, outros da minha primeira [coleção de] alta-costura masculina. Quis mostrar as roupas que eram importantes para mim e espero que o público goste delas tanto quanto eu.

Há alguma peça em particular que lhe desperte mais emoções?
É difícil escolher, seria como escolher entre os meus filhos. Gosto de todos.

Qual seria a sua definição de um “Fashion Freak Show”?
É a história da minha vida, um rapaz dos subúrbios que sonhava trabalhar no mundo da moda. E é contada através da música, da dança e da moda. E todos somos aberrações de alguma forma. Não há apenas um tipo de beleza, mas vários tipos. Sempre adorei a diferença e quis mostrar que a diferença é bela.

O elenco vai de modelos a atores, bailarinos e artistas de circo. Quis assumir o controlo total do casting, como nos desfiles de moda?
Sem dúvida. Adoro o processo de escolher o elenco, adoro a diversidade e adorei trabalhar com estas pessoas. Transmitem-me uma emoção forte sempre que vejo o espetáculo e era esse o meu objetivo.

E também escolheu Nile Rodgers para a banda sonora. Porquê?
“Le Freak c’est chic” [“O anormal é chique”, em tradução livre] diz tudo. Foi uma sinergia perfeita com o que queria para o espetáculo.

Uma da razões para se reformar foi para se concentrar neste show. Podemos esperar mais espetáculos como este no futuro?
Claro. Estou sempre a trabalhar em algo novo e o “Fashion Freak Show” é apenas um deles — não vou voltar a contar a história da minha vida. Será algo completamente diferente.

Como é que olha para indústria da moda agora que está a traçar um caminho diferente?
50 anos de carreira é o suficiente, não acha? Chegou o momento de passar o testemunho à geração mais nova. Mas continuo envolvido na alta costura, onde em cada estação um designer diferente interpreta os meus códigos e cria uma coleção com o meu nome, mas à sua medida.

No passado, já referiu que se apaixonou por Lisboa. O que é que o encanta na cidade?
Primeiramente, adoro as pessoas. Depois, fascina-me a história da cidade com os seus palácios e museus. Da última vez que estive em Lisboa, passei muito tempo no Museu Nacional do Azulejo e adorei. E claro que adoro a comida. É sempre muito importante.

Carregue na galeria para ver algumas imagens do espetáculo “Fashion Freak Show” e descobrir com o que pode contar. Disclaimer: não é modéstia, pudor ou discrição.

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