No interior de um carro, em São Paulo, no Brasil, estava uma figura que a polícia local identificou como um bebé, preso e sozinho no veículo. Antes que as autoridades partissem os vidros da viatura para salvá-lo, a enfermeira Cinthia Caldas chegou a tempo de explicar que, apesar das semelhanças com um ser humano, tratava-se apenas de uma boneca que ficou esquecida.
“Estavam tão assustados que tive de abrir a porta, agarrar nela e colocá-la ao colo deles. No final, não conseguiam parar de rir”, contou ao “G1”, plataforma de notícias da Globo, a técnica de enfermagem, que se dedica a colecionar estes bonecos realistas — conhecidos como bebés Reborn — há mais de duas décadas.
São pintados à mão, com todo o pormenor, desde as expressões faciais até aos mais pequenos detalhes, como as pestanas. Até o cheiro a talco é muitas vezes utilizado. “Acho que prefiro ter um bebé destes do que um bebé de verdade”, afirmou, num vídeo partilhado no TikTok, uma das várias criadoras de conteúdo que se apaixonou por estes bonecos.
Feitos com silicone, recriam recém-nascidos com uma precisão cirúrgica. Começaram a ser criados nos EUA — mais precisamente nos anos 90, segundo a ABC —, mas tornaram-se virais em todo o mundo, graças às redes sociais. Tornou-se difícil escapar à febre dos bebés Reborn, uma tendência que pode custar até dois mil euros.
“Cada boneco deve ser feito à mão para que nenhum seja igual ao outro”, explica à NiT Carolina Nicolodi, uma das artistas que, desde 2020, se dedica à criação destes produtos em Portugal, e que partilha numa página de Instagram.
Acrescenta ainda que os detalhes são a parte mais importante: a pintura deve incluir veias, há vários tons de tinta e profundidade na pele e, no caso do cabelo, é replicado fio a fio, com materiais de qualidade e de origem natural.
Os mais comuns são as esculturas de bebés ou recém-nascidos, mas há cada vez mais opções à venda, eternizando uma fase da vida que, geralmente, dura pouco tempo. Algumas são miniaturas que até podem caber numa mochila, entre outros que já representam miúdos a partir dos dois anos, embora sejam mais raros.
O contacto da brasileira, de 30 anos, com esta arte começou logo após a mudança para o nosso País, em plena pandemia. “Na altura, a minha tia trabalhava com estas esculturas. Perguntou se queria aprender e, à medida que fui fazendo, notei que havia muita procura”, afirma, acrescentando que se sentiu motivada pelo desafio de chegar ao realismo que via nos outros profissionais.
Antes da febre explodir, a resposta era positiva, sobretudo entre os entusiastas deste nicho. “Sempre que vejo esta arte, apaixono-me. Para quem não tem filhos, e para a minha mãe, que é idosa, é uma satisfação tê-los, porque é como se estivéssemos a cuidar de um bebé de verdade. Temos que ter cuidado com o cabelo, ter atenção à pintura, para não estragar”, refere, por sua vez, Carolina, à imprensa brasileira.
O processo criativo de Carolina
Tudo começa com uma escultura, feita a partir de uma massa flexível, baseada em fotografias de bebés reais. Estas obras nascem em fábricas — atualmente, há na Alemanha e na China — onde são feitos os primeiros moldes para serem produzidos em vinil, a matéria-prima final destes bonecos.
É nesta fase que começa o trabalho da artista. Após limpar e remover toda a sujidade, identifica possíveis excessos na borracha. De seguida, trabalha com uma tinta própria e termofixada, que vai ao forno entre 10 a 15 minutos após cada camada, dependendo da tonalidade a aplicar. As peles mais escuras exigem mais camadas.
A escolha das cores é muito importante. Enquanto os tons mais frios, como o azul e o verde, servem para acrescentar profundidade, o roxo dá uma ilusão de pele mais fina. Já o vermelho acrescenta vivacidade e os castanhos e amarelos, por sua vez, ajudam a chegar ao tom desejado.
Ao todo, a criativa precisa de quatro dias, com oito horas diárias de trabalho, para o Reborn ficar finalizado, como mostra neste vídeo. “O meu público são, na maioria, portugueses, mas também vendo para brasileiros e alguns angolanos”.
Quanto ao preço, podem atingir várias centenas ou até milhares de euros, dependendo do nível de realismo ou do tamanho. No caso de Carolina, trabalha com bonecos a partir dos 419€ e que chegam, no máximo, aos 600€. Porém, quando se tratam de artistas mais renomados (e, muitas vezes, de edições limitadas) podem chegar aos dois mil euros.
Uma onda de polémicas
Com o recente sucesso em torno deste segmento de mercado, têm surgido vários debates sobre os bebés Reborn, sobretudo no Brasil. Assiste-se agora a uma série de situações inusitadas com casais em processo de divórcio, a querer disputar a guarda dos bonecos, alegadas “maternidades” onde fazem os partos, com criação dos respetivos documentos — como certidão de nascimento ou boletim de vacinas — e ainda pessoas que usam os bonecos para ter prioridade em filas de atendimento.
As histórias multiplicaram-se de tal forma que levaram o Governo brasileiro a agir. Segundo o “G1”, a Câmara dos Deputados do país registou, a 15 de maio, três novos projetos de lei destinados à criação de políticas públicas relacionadas com a moda dos bebés Reborn.
Entre as medidas, estão a restrição do atendimento médico a estes bonecos em instituições públicas e privadas, a definição de critérios para o acompanhamento psicológico de pessoas com vínculos afetivos fortes com estes bebés e, por fim, a aplicação de multas para quem tentar usá-los para obter prioridade nas caixas de supermercado ou para ocupar lugares em transportes públicos.
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“Os hospitais do Sistema Único de Saúde, com toda a precariedade já existente, precisam priorizar as pessoas. Não podemos [aceitar] que recursos públicos sejam usados para atender objetos inanimados”, afirmou o deputado federal Paulo Bilynsky, sobre os casos em que estes nenucos são levados para unidades hospitalares no Brasil.
À NiT, Carolina Nicolodi, sediada em Castelo Branco, mostra-se surpreendida pela controvérsia que se tem gerado. Segundo a artista, muitos destes casos não têm origem nos colecionadores dos Reborn, mas sim em influenciadores que estão a tentar viralizar nas redes sociais “através de conteúdos sensacionalistas.”
Por um lado, esclarece que “maternidade Reborn” é apenas o nome dado ao local onde acontece a produção destes objetos. “As clientes perguntam se podem vir à minha maternidade, mas é algo perfeitamente normal. É apenas o atelier do artista”.
E acrescenta: “Quando falamos de adultos com este interesse, há muito receio em mostrar a sua coleção. Normalmente, deixam os bebés em casa e só os levam para a rua quando há uma convenção ou um encontro. Tudo o resto não corresponde à realidade.”
Há benefícios?
Apesar das críticas, a ciência aponta para vários benefícios terapêuticos associados ao uso destes bonecos, sobretudo em idosos com demência ou Alzheimer, que ocupam uma pequena fatia nas vendas de Carolina. “É uma indicação dos psicólogos para os acalmar. Gostam de trocar as roupas, arranjar o cabelo e sentem-se melhor.”
Ainda assim, o principal público, revela, é o infantil. O seu trabalho é procurado por muitas meninas que, quando veem um objeto tão realista, têm vontade de o comprar. Muitos destes jovens usam-nos para lidar com a ansiedade ou passar menos tempo no telemóvel.
Há, porém, cuidados a ter com os bonecos. “É importante deixar longe de qualquer tinta, inclusive roupas que soltam tinta durante a lavagem, porque o vinil absorve muito facilmente”, explica. “Não pode apanhar sol, porque vai amolecer e tornar-se muito frágil, nem usar objetivos pontiagudos porque vai danificar.”
A outra grande metade das vendas vai para colecionadores, que gostam da arte e que “são mais exigentes”, segundo Carolina. Os pedidos mais comuns exigem que os olhos fiquem abertos ou que as mãos estejam fechadas, por outro. “São tão específicos porque é um objeto de coleção.”
Embora esteja seja a realidade da criadora brasileira, há outros profissionais que recebem pessoas que procuram conforto emocional após perdas gestacionais. Carolina afirma que não é feito para substituir o bebé, “mas para ajudar a passar por estes momentos de luto”.
“Em muitos casos, o bebé Reborn funciona como um objeto simbólico de afeto, conforto ou processamento emocional”, explica a psicóloga Melissa Tenório dos Santos Campinas, ao jornal brasileiro “Diário do Litoral”.
“Há muito ódio e muitos ataques”
Com este recente mediatismo, a responsável pelo atelier Reborn confessa que “tem sido um mês difícil.” “Há muito ódio e muitos ataques porque as pessoas estão a reagir com alguma estranheza a este hobby”, continua. “Ninguém é obrigado a gostar, mas é algo que entristece esta comunidade, porque ninguém fez nada de errado.”
Segundo um estudo realizado por investigadores da Universidade de Toronto, publicado em 2021, no “Sage Journals”, a prática de ficar apegado a nenucos em idade adulta está ligada “a necessidades emocionais e psicológicas profundas”.
Carolina, contudo, rebate que muitos psicólogos que têm comentado as notícias mais recentes, com diversas polémicas, “nunca trataram pacientes que tiveram problemas com Reborn”. “Falam como se fosse um grande problema quando, na verdade, mais de 90 por cento das pessoas que compram são colecionadores ou miúdos. Há muitos poucos casos de pessoas com problemas sociais.”
E, mesmo com estes ataques, aponta que o número de seguidores nas redes sociais (e, por sua vez, do interesse neste conceito) continua a aumentar. Esta atenção nada mais é, para a artista, do que uma oportunidade para ensinar mais sobre aquilo que faz. “Tenho feito vários vídeos sobre o processo. Mais do que nunca, tento educar as pessoas sobre o que é esta arte”, conclui.
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