Quantas vezes reclamou dos sensores do telemóvel ou das bandas de fitness por não medirem com precisão os batimentos cardíacos ou o exercício físico? E quantas vezes pensou que bom seria ter uma forma de iluminar as suas corridas noturnas e fazer-se visível sem ter de carregar baterias e outros dispositivos consigo para todo o lado? Já há uma solução para isso e foi criada por investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP).
“Inicialmente estávamos a trabalhar só na parte de têxteis para armazenamento de energia, ou seja, um têxtil que funcionava como uma bateria e por isso conseguia armazenar energia para depois alimentar sensores e sistemas de iluminação. Entretanto, como estamos sempre a tentar inovar naquilo que fazemos, e uma vez que o André [Pereira]também trabalha na geração de energia, começámos a tentar combinar as duas energias, tipo dois em um, e ter um sistema que por um lado gera energia mas também por outro é capaz de armazenar a mesma energia. Foi assim que começámos a desenvolver esta área. Em 2018 tivemos o primeiro protótipo a nível laboratorial, quer em têxtil quer em plástico, e começámos a tratar da proteção da propriedade intelectual”, conta à NiT Clara Pereira, investigadora do Laboratório Associado Química Verde – Requimte (LAQV-REQUIMTE), do Departamento de Química e Bioquímica da FCUP.
Em conjunto com André Pereira, investigador do Departamento de Física e Astronomia da FCUP, supervisionaram a equipa que é composta por outra investigadora do mesmo departamento, Ana Pires, e um aluno de doutoramento do LAQV-REQUIMTE, Rui Costa. Foi precisamente esta multidisciplinaridade do grupo que tornou possível a descoberta desta nova tecnologia, o registo da sua patente e até a publicação de um artigo na conceituada revista “ACS Applied Electronics”.
Por um lado, uns estudam mais a produção de nanomateriais e o armazenamento de energia, por outro, vem o conhecimento dos outros elementos sobre como produzir e reaproveitar energia que é desperdiçada e transformar essa energia em energia útil.
Voltando à inovação, a integração desta tecnologia em tecido está a ser desenvolvida também em parceria com o Centro Tecnológico do Têxtil e do Vestuário (CITEVE), o que traz a grande vantagem de permitir “utilizar equipamentos que existem nas indústrias têxteis para fazer isto”. Mas afinal, como é que tudo isto funciona?
“Tudo funciona desde que tenhamos uma variação de temperatura. Ou seja, tenho de ter sempre uma superfície quente e outra fria e por isso o que nós fazemos é usar um têxtil que está em contacto com a nossa pele — e vamos considerar que a nossa pele é a superfície quente — e o meio exterior, que habitualmente está a uma temperatura inferior. Como há esta diferença de temperatura entre nós e o meio ambiente, através dessa diferença de temperatura conseguimos gerar energia térmica, que depois é transformada em energia elétrica. O nosso sistema é capaz de fazer isso e o próprio sistema, a tecnologia, depois armazena essa energia elétrica que foi criada”, explica Clara Pereira.
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A ideia aqui é que há sempre duas faces, uma quente e outra fria, que são chamadas de elétrodos. Entre elas há o eletrólito, onde estão iões que vão saltando de uma face para a outra num “movimento natural por causa das diferenças de temperatura”. Na superfície das faces haverá então um nanomaterial que é capaz de absorver e armazenar esses iões e isso é que se traduz na acumulação da energia.
“O inovador neste caso é um polímero que nós criámos, que funciona como o tal elétrodo e está ao meio. Aqui a produção de energia vai começar naquele meio onde está o eletrólito, o polímero. Depois, os nanomateriais também são importantes, os que estão nas faces, porque vão ser eles que depois vão absorver os tais iões para, no fundo, agarrá-los e assim armazenar energia.”
Este efeito, em si, já é conhecido, chama-se Efeito Soret e há registos dele desde o século XIX. O interessante aqui é mesmo o polímero que é uma espécie de sólido gel que será aplicado aos tecidos para fazer roupa, sobretudo técnica.
“O nosso grande aspeto inovador foi usarmos esse eletrólito, que é um eletrólito gel, uma espécie de estado sólido, como se fosse um material. Essa é a grande inovação, por isso é que conseguimos colocar na roupa. O que nos distingue, quer a patente, quer o que existe na literatura, foi exatamente isso, fomos quase os pioneiros a utilizar um eletrólito gel nesta tecnologia”, sublinha André Pereira.
Se pensarmos que no inverno haverá uma grande diferença entre a temperatura do nosso corpo e a do meio ambiente e que isso acontece mesmo no verão, poderemos estar a produzir energia em contínuo. Quanto maior a diferença de temperatura, melhor.
A característica de armazenamento aqui é importante também porque nem sempre estamos a produzir a mesma quantidade de energia ou pode haver algum pico de produção que desta forma poderá ser aproveitado. Esta é, de facto, uma das vantagens em relação a outros sistemas já existentes. “O dispositivo que faz a energia também é bateria”, justifica André Pereira.
Outros dados interessantes de perceber é que este sistema carrega muito rapidamente e que é capaz de fazer mais de dez mil ciclos com uma eficiência superior a 90 por cento. Por outro lado, não são utilizados elementos tóxicos como o lítio, por exemplo. Ah, e não se preocupe porque não há o perigo de apanhar um choque por transpirar ou haver uma explosão como nas baterias.
Na prática, esta tecnologia poderá ser aplicada em tecidos como um estampado — igual a qualquer frase, desenho ou logótipo que tão frequentemente vemos em roupas — ou como um tingimento de cor. As áreas que mais vão requerer esta novidade serão os wearables, ou seja, as tecnologias que podemos vestir.
Não adianta pensar já que vai poder carregar o telemóvel ou uma powerbank através da roupa, porque isso não será possível. Apenas dá para alimentar dispositivos de baixo consumo. Assim, pode ser aplicada a sistemas para contar passos, por exemplo, para sensores de monitorização de sinais vitais — até em meio hospitalar, onde será mais confortável vestir uma camisola do que ter elétrodos colados à pele —, para geolocalização através de Bluetooth ou iluminação na roupa para desportistas. Mas estes são apenas exemplos.
Como seria de esperar, isto já está a chamar a atenção de grandes empresas, como diz André: “Já estamos em contacto com uma empresa nacional bastante forte na área do têxtil. Agora tivemos contacto com uma empresa estrangeira que também quis falar connosco sobre a tecnologia”.
Agora, até chegar ao mercado serão necessários ainda três ou quatro anos porque há uma série de passos a cumprir desde a invenção até à comercialização, além de que é necessária a parte do circuito integrado.
“Até aqui estivemos preocupados em perceber o conceito, qual era a capacidade, que tipo de sensores conseguíamos alimentar, agora a seguir o passo é perceber toda essa resistência à lavagem, ou se pode provocar algum tipo de alergias. No entanto, já antevemos algumas estratégias caso seja preciso aumentar a resistência à lavagem, há formas de encapsulação deste tipo de têxteis, filmes muito finos que são colocados na superfície, que não muda sequer a superfície do têxtil e que é possível colocar para proteger sempre que é necessário”, remata Clara Pereira.