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Do TikTok para os jardins da cidade: o clube de leitura feminista e queer do Porto

Cristiana criou o Picnic Bookclub no verão do ano passado. Quase um ano depois, já conta com 200 membros — e continua a crescer.
O clube.

Crescemos a ouvir que para enriquecermos os nossos hábitos de leitura, por vezes, até pouco importava o género, o importante era mesmo ler. As gerações mais novas acabaram por afastar-se deste hábito, sobretudo por causa dos smartphones e redes sociais. Ainda assim, nos últimos dois anos, ler tornou-se tendência. Graças a quem? Precisamente o digital. O TikTok é uma das plataformas que mais têm incentivado os jovens portugueses a voltarem para os livros. A hashtag “#BookTook” já criou verdadeiros bestsellers e levou autores ao topo de vendas. É por aqui que milhares de utilizadores da plataforma partilham as suas leituras e a forma como certos livros mudaram as suas vidas. 

Cristiana Rodrigues cresceu a ser um autêntico rato de biblioteca. A jovem de 26 anos, natural de Santa Maria da Feira, podia passar dias inteiros a ler. Quando chegou a hora de se formar em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto, deparou-se com uma nova realidade: ler já não fazia parte da sua rotina diária. Em 2021, já no mercado de trabalho, essa situação só piorou. “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, foi um dos livros que mais a marcaram e já revela o tipo de géneros de que gosta, daqueles que despertam todo um debate político e social à volta das páginas, não há grande lugar para os romances lamenchas que se vêm nas redes sociais nos dias de hoje — apesar da jovem admitir não fechar-se ao género. Às vezes não fazer mal à saúde (e à imaginação) ler um livro cheio de romance.

“Apercebi-me que precisava de resgatar um hobby antigo que sempre me fez muito feliz: ler. Não consegui fugir à tendência e fui ao TikTok à procura de uma sugestão que me fizesse voltar a fazer da leitura uma parte fundamental da minha rotina diária. O problema é que não encontrava aquilo que eu queria. Ou eram só livros famosos da plataforma, de romance ou fantasia e não é que não gostasse de ler esses géneros, mas não era o que estava a procurar. Queria algo mais virado para uma questão política, social, para ter discussões saudáveis”, começa por contar à NiP.

Outra solução foi juntar-se a clubes de leitura. Ainda no Porto, chegou a fazer parte do clube de leitura do Batalha Centro de Cinema. Apesar de gostar da experiência, ficou desmotivada pelo facto de ocorrer por temporadas e não existirem encontros mensais fixos. Depois disso, rumou para a sua cidade natal, onde se juntou ao clube de leitura da biblioteca municipal. Mais uma vez, não foi “o tal”.

“A demografia era um bocado mais velha então não me identifiquei muito. E os livros que liam também não eram muito o que estava à procura”, admite à New in Porto.

Em junho do ano passado, um sábado à noite, lembrou-se de voltar ao TikTok, mas desta vez decidida a criar o seu clube de leitura, do jeito que ela queria e com livros que criassem um impacto no dia a dia das pessoas. “Meninas do Porto, quem é que se quer juntar para fazer um piquenique e discutir leituras feministas?”, questionou no vídeo. 

“Surpreendeu-me o feedback que tive. Pensei que nem meia dúzia de respostas iria ter e afinal as mensagens não paravam de chegar. Decidi criar um grupo no WhatsApp para todos os interessados se irem juntando. Até hoje o grupo continua a ser o mesmo. Por lá definimos a data do encontro mensal, bem como o local e o livro que vamos discutir”, explica.

Os encontros acontecem, por norma, no último sábado de cada mês — mas isso também depende da agenda da cidade. Por exemplo, no mês de junho deverá ocorrer antes porque no último sábado do mês já está marcada a marcha Pride. Apesar de contar com 200 membros no grupo de WhatsApp, Cristiana limita os encontros mensais a 30 participantes.

“Quero que todos tenham a oportunidade de participar. Claro que temos caras já familiares e que fazem questão de marcar presença em todas as sessões, mas também quero dar oportunidade a quem queira juntar-se pela primeira vez”, admite. 

 
 
 
 
 
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Para participar nos encontros, basta preencher um formulário disponível nas redes sociais do clube, por um custo simbólico de 2€. Contudo, a forte adesão tem limitado ainda mais a quantidade de participantes por sessão, o que levou a jovem a criar uma lista de espera, precisamente para garantir que sessão após sessão, mais pessoas novas se podem juntar. Pode inscrever-se na lista de espera, também de forma gratuita.

Ainda assim, o grupo de WhatsApp já é toda uma comunidade. Está aberto para todos os que querem dar uma nova oportunidade a um autor ou a um livro. “Não é obrigatório assistirem aos encontros para estarem no grupo. Há muitas pessoas que estão lá e nunca foram a um encontro, seja porque são mais introvertidos ou por incompatibilidade de agendas ou porque preferem um contacto mais digital, digamos. Serve também para partilharmos ideais e sugestões entre todos”.

O grupo e estes encontros têm-se revelado como uma nova forma (mais fácil) de conhecer pessoas novas. A jovem conta que muitos membros assíduos do clube tinham o mesmo problema dela: não conseguiam conhecer pessoas novas aos 26 anos. O processo tem-se tornado mais fácil graças ao Picnic Bookclube.

O nome do clube é um pista para outra das suas valências: o objetivo é juntar “comidinha boa e dar a todos a oportunidade de falar”. Sempre que o tempo permitir, os encontros acontecem nos jardins da cidade. Muitas das sessões já ocorreram nos jardins do Palácio de Cristal No inverno, o clube tem-se refugiado nos cafés do Porto.

A dinâmica no Picnic Bookclub é simples e o mais democrática possível — a “CEO” do clube, como é carinhosamente apelidada, escolhe um tema por mês. Por exemplo, em abril, o tema foi a liberdade. Depois disso sugere quatro ou cinco livros e os membros do clube votam para decidir qual deles irão ler ao longo do mês para depois discutir no encontro.

“O interessante é que as discussões não ficam apenas pelas opiniões sobre o que lemos. As pessoas conseguem trazer fimes, séries ou as suas experiências pessoais e tudo aquilo que consideram que é relevante para o tema. E mesmo quando alguém não gosta da leitura, porque acontece naturalmente, está sempre receptivo à opinião dos outros. Até ao momento, só houve um livro mais controverso: ‘Orlando’, de Virginia Wolf. Ainda assim, no final do encontro, pessoas que não gostaram ou nem sequer acabaram o livro, diziam coisas como: ‘percebi coisas que não tinha percebido’ ou ‘vou dar uma segunda oportunidade ao livro’. É sempre bom ver as diferentes perspectivas porque todos interpretamos o livro de uma forma diferente. Mas a base do clube é o respeito, para as pessoas poderem partilhar as suas opiniões”, defende a fundadora do projeto.

O livro do mês de maio é “A Hora da Estrela”, da autora brasileira Clarice Lispector. Trata-se da última obra publicada pela escritora que venceu o Prémio Jabuti em 1978, adaptado para cinema em 1985 e para teatro musical em 2020. Nas palavras da autora, é “a estória de uma moça, tão pobre que só comia cachorro quente. Mas a estória não é isso, é sobre uma inocência pisada, de uma miséria anónima”. 

O objetivo da Cristiana é destacar acima de tudo escritores portugueses — seja de naturalidade ou língua, mas não fica só por aqui. “Um dos focos do clube é fomentar a leitura e a literatura portuguesa. Gostaria de ter a possibilidade de convidar um autor português, por exemplo, para uma sessão de perguntas ou para moderar um dos encontros. Acho que seria interessante. Mas acima de tudo, quero que as pessoas saibam que o Picnic Bookclub é uma comunidade de debate e partilha de opiniões e como é que as histórias e o que lemos têm impacto na nossa vida”.

O livro escolhido pode ser lido pelos participantes no formato que preferirem, físico ou digital, sendo necessário levá-lo consigo para os encontros, que têm a duração de cerca de três horas, entre as 15 e as 18 horas. Por enquanto, o grupo é maioritariamente feminino, com idades entre os 18 até aos 50 anos, onde se abordam temas como dinâmicas familiares complicadas, a divisão de tarefas domésticas, os desafios de ser mulher na sociedade atual, entre outras. 

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