Kendrick Lamar passou por cenas. Em “United in Grief”, canção que abre o seu mais recente álbum, “Mr. Morale & The Big Steppers”, lançado em 2022, o rapper deixa-o bem claro logo nas primeiras palavras: “I’ve been goin’ through somethin’, One-thousand eight-hundred and fifty-five days”.
Tinham corrido 1855 dias desde que lançara “Damn”, o seu álbum anterior. Nesses cinco anos, muita coisa mudou no mundo e na sua vida. Elevado ao Olimpo do rap, Lamar começou também a sofrer as pressões da fama como nunca, levando-o a recorrer a terapia para o bem da sua saúde mental.
É deste cocktail que nasceu “Mr. Morale & The Big Steppers”, um projeto mais introspetivo e que mostra outro Kendrick Lamar, que encerrou o palco principal do Primavera Sound Porto esta quarta-feira, 7 de junho. Um artista diferente daquele que amassou o palco quando veio a Lisboa em 2016, sem dúvida distinto daquele que se estreou em Porto neste mesmo festival em 2014.
Kendrick não precisou de cantar “United in Grief” para demarcar essa mudança, notou-se desde que subiu ao palco. O rapper mostrou-se um homem mais maduro, dono da sua arte e confiante na capacidade de lidar com o público e os desafios inerentes a uma atuação ao vivo. Houve dois momentos em particular: o novo palco e o temporal que se abateu sobre o Porto.
Se a mudança é uma constante da vida, não é por isso que não deve ser questionada. Para esta edição do Primavera Sound Porto, a organização mudou a disposição do recinto e despromoveu o anterior palco principal a secundário. É uma decisão que não se compreende, já que se encontra no fundo de uma colina do Parque da Cidade e faz um anfiteatro onde é possível ter muita gente a ver as atuações em condições.
Apanhar a molha de uma vida para conseguir ver Kendrick 🥲 pic.twitter.com/eb45AHyLLT
— Joana Gomes (@joanacagomes) June 8, 2023
Ao invés, os principais artistas desta edição foram movidos para o novo Palco Porto, colado à Estrada da Circunvalação. Sem elevação natural e com muito menos espaço de circulação, é um downgrade notório e a chuva que se fez sentir abundantemente só tornou essa queda mais gritante. Sem sítio para escoar, a água fez da zona relvada um lamaçal. Já quem ficou mais atrás para se resguardar, devia ter trazido binóculos.
Nada disto, porém, fez esmorecer o entusiasmo palpável por receber um dos maiores artistas do mundo e um dos melhores rappers da sua geração. E se Lamar se apresentou um homem diferente, também fez questão de frisar que é o mesmo que deixou o mundo do rap em polvorosa quando apareceu. Vestido integralmente de laranja, evocou o seu alter-ego, Kung Fu Kenny, para demonstrar que ainda lança rimas como golpes fatais.
Após iniciar as hostes com “N95”, fez esquecer a copiosa chuva com “ELEMENT” e “ADHD”, tema do seu primeiro álbum, recordado para quem o acompanha desde o início da sua jornada. De imediato, notou-se que algo soava diferente. Lamar não trouxe uma banda completa para palco como fez em 2016, mas teve músicos a tocar ao vivo ocultados por lonas ou nas laterais. A bateria forneceu a pujança que tantas vezes falta em concertos de rap sem instrumentação ao vivo; as guitarras deram novas roupagens a êxitos cantados a plenos pulmões, como “Backseat Freestyle”, “m.A.A.d city”, “HUMBLE” ou “Swimming Pools (Drank)”.
Estas injeções de energia foram sendo intercaladas com temas do novo álbum que, não destoando, foram claramente os momentos mais parados. Não desmerecendo a qualidade de “Count me Out” ou “Die Hard”, a reação do público a “DNA” ou “Money Trees” demonstrou que foi por elas que enfrentou a chuva.
Na reta final, após recordar a sua passagem por estas bandas em 2014 e agradecer a todos os que ficaram ensopados para ouvi-lo, Kendrick Lamar ensaiou a sua sequência final. Primeiro, trouxe o primo, Baby Keem, que já tinha atuado horas antes no mesmo palco, para “family ties”. Mais do que o nome da música pode demonstrar, foi um gesto que ressalvou a vontade de Lamar construir um legado que não passa apenas pela sua obra, mas também pela de outros que decidiu apadrinhar.
Depois dessa chicotada de trap, a eletricidade continuou no ar para “Alright”, tema de esperança tornado hino ativista contra o racismo e a brutalidade policial. A coisa podia ter ficado por aqui, mas Lamar ainda voltou para terminar numa toada mais reflexiva. Com “Savior”, lembrou que não é um santo e é só um homem que depende da nossa aprovação: “Smile in my face, but are you happy for me? Yeah, I’m out the way, are you happy for me?”.
(Kendrick Lamar não permitiu a captação de fotografias)